(Foto: NASA/ SDO/ AIA).

Imagina-se que o mesmo lugar tenha diferentes nomes em diferentes locais. Por exemplo, os supostos habitantes de um planeta em torno da estrela Alfa Centauri certamente não chamarão seu sol de Alfa Centauri. E o mesmo deve valer para a nossa Terra, que deve ter diferentes nomes, dependendo do ponto de vista. Pois um desses nomes, pouco conhecido entre nós, é Urântia.
O nome surgiu na obra O Livro de Urântia, que chegou a ser considerado o livro mais estranho do século 20. As informações oficiais encontradas nos sites que divulgam as mensagens do livro dizem que não existem autores humanos, vivos ou mortos, mas apenas os “Seres celestiais (filhos descendentes de Deus)”, que entregaram a obra completa a um grupo de pessoas em Chicago, nos EUA. As informações sobre os autores estão no livro, mas não existem muitos detalhes. “O que sabemos”, diz o site brasileiro, “é que um grupo de seres celestes, proveniente da capital do superuniverso, foi designado para escrevê-lo e entregá-lo à raça humana”.
Diz-se que os contatos com os humanos começaram em 1911 e estenderam-se até 1935, quando o livro foi entregue, ainda que só tenha sido publicado em 1955. Ele tem 196 documentos com cerca de duas mil páginas com inúmeros conceitos e ideias ligadas aos campos da ciência, filosofia, religião, história, sociologia e teologia, além de uma perspectiva da origem humana, sua história e destino. Mais uma vez, no site brasileiro, a explicação de seu conteúdo diz que “Há uma gama enorme de assuntos tratados no livro, desde os mais elevados como Deidade, Divindade, Trindade, suas coligações e manifestações; como também temas menores como geologia, história, cosmologia, evolução, etc. O livro apresenta uma nova visão sobre ciência, filosofia e religião, sendo talvez a mais clara e concisa integração disponível para o homem moderno, destes assuntos”.
Aqueles que consideram O Livro de Urântia uma obra real e não inventada por humanos, afirmam que a cosmologia que ele apresenta é consistente com os conhecimentos atuais da ciência, mas muitos críticos apontam inúmeras falhas nesse pensamento, afirmando que todo o conhecimento científico apresentado é condizente com o que a ciência humana conhecia na época, ou seja, em 1955, quando o texto foi publicado.

O livro afirma que Urântia é um de muitos planetas habitados no universo local, chamado de Nebadon (Imagem: NASA/ ESA/ H. Teplitz e M. Rafelski [IPAC/Caltech]/ A. Koekemoer [STScI]/ R. Windhorst [Arizona State University] e Z. Levay [STScI]).

Entre outras coisas, o livro afirma que nosso mundo, Urântia, é um de muitos planetas habitados semelhantes que existem no universo local, chamado de Nebadon. Por sua vez, esse universo, junto com outros similares, compõe o superuniverso de Orvonton, com capital em Uversa. Orvonton é um dos “sete superuniversos evolucionários do tempo e espaço”, que, por sua vez, circulam o universo central de Havona. No coração desse universo central e eterno, encontra-se a Ilha do Paraíso, o “centro geográfico do infinito” e o local em que habita o Deus eterno.
Os sete superuniversos e o universo central são chamados de “grande universo”, e são as criações organizadas e habitadas. Todos são parte do “universo principal”, que também abrange os universos não habitados.
O Livro de Urântia é dividido em quatro partes. A primeira (31 documentos) se refere à natureza da divindade e a realidade do Paraíso. Discute a cosmologia dos superuniversos e os milhões de mundos habitados em diferentes estágios de evolução biológica, intelectual, social e espiritual. Retrata alguns de seus habitantes segundo sua origem e função, e fala sobre a natureza de Deus e sua relação com a criação. Também discute a organização e os trabalhos dos superuniversos e do universo central. Diz-se que foi formulada por uma alta comissão de 24 administradores de Orvonton, liderados por um Conselheiro Divino.

(Imagem: NASA/ CXC/ JPL-Caltech/ STScI/ NSF/ NRAO/ VLA).

A segunda parte (25 documentos) discute o universo local, a subdivisão administrativa, a organização e as personalidades e autoridades. Também se refere ao que deve ocorrer com os seres humanos (ou personalidade humana) após encerrarem sua estadia em Urântia; a sobrevivência da personalidade é determinada por nossas decisões baseadas no livre-arbítrio e relacionadas com nossa relação pessoal com Deus. Descreve nossos primeiros passos em novos mundos e o programa que providencia nosso desenvolvimento pessoal o que, em algum momento, irá permitir reconhecer Deus.
A terceira (63 documentos) conta a história de nosso planeta a partir do ponto de vista de observadores super-humanos, desde sua origem num sol (o nosso) expelido pela agora extinta nebulosa Andronover, há cerca de seis bilhões de anos, até o presente. Traça a evolução geológica e da vida, após ter sido implantada, assim como a evolução das raças, civilizações, costumes, filosofias e religiões. Traz também uma descrição dos mundos em que iremos habitar imediatamente após a morte. A segunda e a terceira parte foram autorizadas por uma comissão de doze seres de Nebadon, agindo sob a direção de Mantutia Melquisedeque.
A quarta (77 documentos) traz a vida e ensinamentos de Jesus, inclusive informações de fontes até então inacessíveis a respeito de sua vida pré-Urântia, com detalhes que, segundo se diz, não foram apresentados pelos apóstolos. Os responsáveis por essa quarta parte foram doze “intermediários” de Urântia, agindo sob a supervisão de um diretor de Melquisedeque.

Trabalho artístico mostrando a protuberância central da Via Láctea (ESO/ NASA/ JPL-Caltech/ M. Kornmesser/ R. Hurt).

A maior dificuldade para se compreender a existência de O Livro de Urântia parece residir na forma como ele de fato surgiu. Além da explicação de que ele foi “entregue” aos humanos, só existem suposições. Alguns afirmam que a obra foi “materializada”, mas não há qualquer explicação sobre isso. A autora Rosemary Ellen Guiley, em seu imenso livro Encyclopedia of the Strange, Mystical & Unexplained (1991), diz que popularmente presumiu-se que o trabalho foi canalizado por seres humanos que preferiram se manter anônimos, mas segundo a Urantia Foundation, que publica o livro e ajuda a missão Urantia, a técnica pela qual os documentos foram comunicados é desconhecida de qualquer ser vivo”.
Fala-se que, para ajudar na materialização do livro na língua inglesa – seja lá o que signifique essa materialização – foi utilizado o Ajustador de Pensamento (The Thought Adjuster), também conhecido como sendo o Espírito de Deus que existe dentro de cada ser humano.
Os chamados “intermediários” (midwayers) – seres muito próximos dos mortais, que podem operar tanto nos mundos materiais quanto nos espirituais – foram utilizados no processo de materialização, mas não existe uma descrição desse processo. O que se diz é que os intermediários de forma alguma estão associados com o espiritualismo ou com fenômenos mediúnicos, e que normalmente não permitem que humanos testemunhem suas atividades.
O site da Urantia Foundation diz que os “Ajustadores de Pensamento” provêm diretamente do Pai Universal. “Apesar de existirem diversas opiniões a respeito do modo de concessão dos Ajustadores de Pensamento”, diz o texto do site, “não existem diferenças no que diz respeito à sua origem; todos concordam que eles procedem diretamente do Pai Universal, a Primeira Origem e Centro”. Mas também afirmam que existe muito pouco conhecimento a respeito dos Ajustadores; não se sabe quando iniciaram suas existências à parte do absoluto da Primeira Origem e Centro, ou quantos Ajustadores existem. “Sabemos muito pouco no que diz respeito aos seus cursos até que cheguem aos planetas a tempo de habitar mentes humanas”.

William S. Sadler (publicado em Chautauqua Manager's Association of Chicago, em 1915).

Um dos responsáveis pela publicação do livro foi o cirurgião e psiquiatra autodidata norte-americano William Samuel Sadler (1875-1969). Ele tinha uma opinião bem clara a respeito da atuação dos médiuns e o contato com os espíritos, atividade que se tornou muito popular no início do século 20. Sadler dedicou parte de seu tempo para desmascarar clarividentes e outros que se diziam psíquicos, e chegou a escrever o livro The Truth About Spiritualism (A Verdade Sobre o Espiritualismo, 1923).
Era um cético, entendendo que todos os casos envolvendo os espiritualistas ou eram fraudes ou autoenganação; com uma possível exceção. Foi essa exceção que ele resolveu estudar.
Tratava-se de um homem que falava quando dormia; mas na verdade era outro ser que falava por meio dele, um “visitante” de outro planeta. O médico já tinha reunido um grupo de discussão envolvendo assuntos como saúde, história, política e outros, e o tema espiritualismo acabou sendo discutido uma vez que ele estava interessado no assunto.
Resolveram falar com o homem, ou mais exatamente com o ser que se manifestava por meio dele e que se chamava o Poderoso Mensageiro. Perguntaram-lhe se poderia provar que era quem dizia ser, e ele respondeu que não, mas que também não poderiam provar que ele não era. O mensageiro disse, então, que em vez de perderem tempo com questões bobas, deveriam preparar as questões mais profundas que pudessem imaginar.
Foi o que fizeram. Elaboraram cerca de cinco mil perguntas; algumas eram superficiais como “qual a idade de Deus, quem o criou?”, e outras mais investigativas. E o que ocorreu foi que, num dia, as questões haviam desaparecido e, no local onde elas estavam, surgira o primeiro documento de Urântia, que foi chamado de O Pai Universal. O texto, assim como os que se seguiram, surgiam sempre escritos à mão, na caligrafia do sujeito em questão, mas Sadler e seus companheiros jamais conseguiram descobrir como isso era feito. A identidade do homem foi mantida em segredo a pedido dos seres que forneceram os textos, uma vez que não desejavam que o livro fosse associado a uma única pessoa; segundo eles, os seres humanos têm a tendência a centrar suas atenções mais na pessoa do que na mensagem.
Posteriormente, o filho de Sadler, William Sadler Jr., disse que é impossível traduzir direto da linguagem de Uversa para o inglês, uma vez que as linguagens são muito distantes, de modo que o texto deve ter passado por várias traduções – pelos idiomas de Salvington e Satania, por exemplo. Assim, 99% do conceito original devem ter se perdido.

Apesar das instruções dos mensageiros no sentido de se dar mais atenção à mensagem do que às pessoas, parece haver algumas dissidências com relação a O Livro de Urântia. É possível encontrar pela internet vários sites de grupos de estudos e discussão que fazem questão de dizer que não estão relacionados com a Urantia Foundation. Além disso, muitas vezes é possível detectar uma atenção centrada nas figuras envolvidas nas mensagens, seja Michael (que ganhou até uma bandeira, em um dos sites), seja Melquisedeque, seja o próprio Jesus Cristo, cuja história ocupa a quarta parte do livro.
Uma postura crítica com relação à natureza e origem de O Livro de Urântia pode ser encontrada no The Skeptic’s Dictionary (skepdic.com/homepage.html, com páginas traduzidas para o português em Dicionário do Cético: http://brazil.skepdic.com/urantia.html). Segundo o texto, Martin Gardner – colunista da revista Scientific American de 1956 a 1986 – afirmou que O Livro de Urântia tinha autores muito reais. Originalmente, ele disse, o livro era a “bíblia” de um culto separatista dos Adventistas do Sétimo Dia, livro que teria sido canalizado por Wilfred Kellogg e editado pelo fundador, William Sadler, psiquiatra de Chicago. O livro conteria muitas doutrinas dos Adventistas, e Sadler teria estado associado ao igualmente adventista dr. John Harvey Kellogg (1852-1943), famoso por suas ideias a respeito de dieta e saúde. Gardner também levanta o fato de que várias passagens do livro se referem a filosofias e teologias bastante conhecidas na Terra, e que os insights e revelações apresentados no livro nada trazem de substancialmente novo.

Em seu livro já citado, Rosemary Ellen Guiley apresenta um bom resumo de seu conteúdo, explicando que Urântia, a Terra, é um de 10 milhões de planetas habitáveis no universo local, Nebadon, um dos muitos universos que formam o superuniverso de Orvonton. Os seres que dizem ter escrito O Livro de Urântia são de todas as seções do grande universo, com autorização dos Anciões dos Dias, os administradores de Orvonton que residem em sua capital, Uversa. Na realidade, o termo é o plural de um termo que surge poucas vezes na Bíblia referindo-se a Deus.

A Mulher, o Homem e a Serpente (Byam Shaw, 1911).

Diz-se que a história de Urântia começou há 987 bilhões de anos quando as condições espaciais em uma parte de Orvonton foram consideradas favoráveis para a materialização de mundos e vida. O planeta em si só foi formado há 3,5 bilhões de anos e, como todos os planetas habitáveis recebem uma numeração, Urântia é o de número 606 no sistema local de Satania, e teria obtido seu tamanho atual há 1 bilhão de anos, época em que sua história oficial se inicia.
Rosemary Ellen Guiley escreveu que uma vez que um planeta é povoado e um Jardim do Éden desenvolvido, um Filho Material e uma Filha Material chegam a ele como “elevadores biológicos” para aprimorar a qualidade racial e a revelação de Deus. Em um momento apropriado do desenvolvimento espiritual e intelectual, um Filho do Paraíso surge em uma missão de doação para levar o mundo a uma era espiritual na qual guerra, doença e degeneração são eliminadas.
Em Urântia/Terra, os primeiros seres humanos foram Andon e Fonta, que aparecera, no planeta 993.473 anos atrás, enquanto Adão e Eva só surgiram há 37.904 anos. Antes de sua chegada, no entanto, o planeta foi abalado pela rebelião de Lúcifer e Satã, com a deposição do Príncipe Planetário, Caligastia, normalmente conhecido pelos mortais como o “diabo”.
Adão e Eva teriam cerca de 2,5 m de altura, com corpos brilhantes que indicavam sua origem superior, e eram capazes de se comunicar telepaticamente. Passaram 117 anos tentando elevar os seres humanos, mas eram constantemente importunados por Lúcifer, Satã e Caligastia. Eventualmente, Eva foi vítima de um plano de Caligastia para seguir um caminho que misturava o bem e o mal. A queda de Adão e Eva teria retardado severamente o desenvolvimento espiritual de Urântia, fazendo com que se tornasse “um planeta confuso e desordenado”.

                                                                                                 (Foto: AstroAnthony/ Wikipedia).

O livro diz que o universo local, Nebadon, é governado por Cristo Miguel e, como informa Guiley, o Cristo que aparece em Urântia na forma humana de Jesus de Nazaré é Miguel de Nebadon, criador, organizador e, agora, soberano do universo local de Nebadon. Existem muitos Filhos Miguel, e cada um deles voluntariamente sai do Paraíso para inspecionar porções do cosmo. Por meio de encarnações de dádivas, os Filhos amadurecem em seus papéis como soberanos como parte de sua educação e treinamento. Miguel teve sete dessas encarnações, em sete diferentes mundos, começando um bilhão de anos atrás; a última foi em Urântia.
Ao contrário das anteriores, Miguel resolveu encarnar em Urântia na forma carnal, começando como criança, após uma escolha cuidadosa dos pais. Os chamados “anos perdidos” de Jesus foram passados em viagens de estudos. E, após sua crucificação, O Livro de Urântia diz que Jesus ressuscitou, mas não em carne ou em espírito, e sim à semelhança dos seres ascendentes do sistema local de Satania. Seu corpo permaneceu na tumba e tornou-se pó, num processo acelerado; e, depois de algumas aparições aos fiéis, Jesus ascendeu, retornando ao seu status como Miguel, tendo obtido sua soberania do universo como um Filho Criador do Paraíso.
Muitas das críticas ao livro dedicam bastante atenção à quarta parte, exatamente a que fala de Jesus e seus ensinamentos, entendendo que são apenas variações dos temas centrais do Cristianismo, como tantas outras que existem. Ainda assim, os ensinamentos do livro, ainda que reconheçam algumas virtudes do Cristianismo, condenam sua transformação, com suas políticas e comércio, e alegam que não é intenção de O Livro de Urântia criar uma nova religião.

Para quem quiser se aprofundar no assunto:

Associação Urantia do Brasil
www.urantia.com.br

Urantia Foundation
www.urantia.org